Operações interestaduais destinadas a não contribuintes do ICMS: inexigibilidade do DIFAL em 2022

DIFAL de ICMS em operações interestaduais destinadas a não contribuintes só poderá ser cobrado em 2023, sob pena de desrespeito ao princípio da anterioridade anual.

Por “DIFAL” deve-se entender “diferencial de alíquota”, um instrumento de política fiscal criado com o objetivo de equilibrar a arrecadação do ICMS entre estados de origem e de destino envolvidos em operações interestaduais de circulação de mercadorias e serviços. Trata-se de tributo a ser recolhido ao estado de destino do bem, cuja alíquota corresponde à diferença entre a alíquota interna do estado destinatário e a alíquota interestadual do estado remetente.

Sua previsão legal não é nova: a redação originária do artigo 155, § 2º, VIII, da Constituição Federal[1], já estabelecia a exigência do DIFAL nas operações interestaduais para consumidor final contribuinte do ICMS. Nesses casos, o imposto seria recolhido ao estado de origem pela alíquota interestadual e ao estado de destino com base no diferencial de alíquotas.

No entanto, a Carta Magna não exigia o DIFAL em operações interestaduais envolvendo destinatários não contribuintes. Ao revés, o artigo 155, § 2º, VII, “b”, da CF, estabelecia que todo o ICMS devido nessas operações cabia ao estado de origem, devendo ser calculado com base na respectiva alíquota interna de onde estava localizado o fornecedor das mercadorias ou o prestador do serviço.

Ou seja, em operações interestaduais entre contribuintes do ICMS, a redação original da Constituição Federal já exigia a partilha do tributo entre os estados de origem e de destino da mercadoria ou do serviço; porém, em operações em que o destinatário não fosse contribuinte do ICMS (como é caso das pessoas físicas), a arrecadação ficava – integralmente – para o estado de origem.

Em um cenário de exponencial crescimento do comércio eletrônico, esta regra de concentração da arrecadação nos estados de origem gerou distorções no equilíbrio econômico entre as unidades federadas. Surgiu um grande desequilíbrio fiscal entre unidades produtoras e consumidoras, a considerar a centralização dos distribuidores de mercadorias em alguns poucos estados, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste.

Atento a esta problemática de repartição de receitas, o legislador apresentou a PEC 197/2012[2], que culminou na Emenda Constitucional 87/2015. Por meio desta, alterando-se os incisos VII e VIII, do § 2º, do artigo 155, da Constituição Federal[3], o DIFAL em operações interestaduais passou a ser devido aos estados onde localizado o consumidor final, fosse ele contribuinte ou não do imposto.

A Emenda Constitucional nº 87/2015, portanto, estendeu a sistemática da cobrança do DIFAL às situações em que o consumidor final destinatário em operações interestaduais não é contribuinte habitual do imposto. Desde então, independentemente de a operação ser destinada a contribuinte ou não do ICMS, a arrecadação deveria ser dividida entre os estados de origem e de destino.

Em razão disso, a considerar que a Lei Kandir (Lei Complementar 87/1996, que dispõe sobre o regramento nacional do ICMS) não dispunha sobre o diferencial de alíquotas em comento, o Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ, em 17/09/2015, celebrou o Convênio ICMS 93/2015 a fim de dispor “sobre os procedimentos a serem observados nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte do ICMS, localizado em outra unidade federada”.

Para compreensão das modificações trazidas pela EC 87/2015 e pelo Convênio ICMS 93/2015, considere a seguinte hipótese: a empresa “A”, domiciliada em São Paulo, vendeu um produto por R$ 1.000,00 (um mil reais) à pessoa física “B”, domiciliada no Ceará. A Alíquota interna de São Paulo é de 18%; a alíquota interestadual São Paulo/Ceará é de 7%; a alíquota interna do Ceará é de 18%.

Antes das alterações promovidas pela EC 87/2015 e pelo Convênio ICMS 93/2015, o ICMS devido nessa operação seria integralmente destinado a São Paulo, no total de R$ 180,00 (cento e oitenta reais), obtido pela aplicação da alíquota interna desse estado (18%) sobre o valor do produto.

Após as modificações, o estado de destino passou a ter direito à parte da arrecadação: a São Paulo, seria destinado o valor de R$ 70,00 (setenta reais), referente à aplicação da alíquota interestadual sobre o valor do produto; ao Ceará, caberia o DIFAL no valor de R$ 110,00 (cento e dez reais), obtido pela aplicação da diferença entre a sua alíquota interna (18%) e a alíquota interestadual de São Paulo (7%) sobre o valor do produto.

Ocorre que normas gerais em direito tributário devem obrigatoriamente ser veiculadas por lei complementar[4]. Com esse fundamento, contribuintes sustentaram a inconstitucionalidade do Convênio ICMS nº 93/2015, que teria por consequência a invalidade da cobrança do diferencial de alíquota do ICMS em operação interestadual envolvendo mercadoria destinada a consumidor final não contribuinte.

A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal pela ADI 5.469/DF e pelo RE 1.287.019/DF (Tema: 1093 – Necessidade de edição de lei complementar visando a cobrança da Diferença de Alíquotas do ICMS – DIFAL nas operações).

Em julgamento conjunto, o STF entendeu pela inconstitucionalidade formal das cláusulas primeira, segunda, terceira, sexta e nona do Convênio ICMS nº 93/2015, fixando a tese de que “a cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional nº 87/2015, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais”.

Todavia, com o objetivo de evitar severos danos aos estados e Distrito Federal, a Suprema Corte entendeu por bem modular os efeitos desta decisão, ressalvadas as ações judiciais que estavam em curso. Assim sendo, decidiu que a inexigibilidade da cobrança teria efeito apenas a partir de 2022, devendo perdurar até que o Congresso editasse Lei Complementar para regulamentar o tributo.

Desse modo, a fim de regularizar a exigência do tributo, foi apresentado o Projeto de Lei Complementar n° 32, de 2021. Após aprovação do Senado e da Câmara dos Deputados ainda em 2021, o PL foi sancionado pelo Presidente apenas em 04/01/2022, de modo que em 05/01/2022 foi publicada a Lei Complementar 190/2022[5].

Da leitura da lei, constata-se que seu artigo 3º dispõe que ela “entra em vigor na data de sua publicação, observado, quanto à produção de efeitos, o disposto na alínea “c” do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal[6]”. Referido dispositivo da Carta Magna trata do princípio da anterioridade nonagesimal, por força do qual os entes federados não podem exigir tributos “antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”.

Ou seja, conforme a previsão do artigo 3º da LC 190/2022, o DIFAL poderá ser exigido a partir de 05/04/2022. A nosso ver, entretanto, essa exigência só será válida a partir de 2023, sendo inconstitucional a sua cobrança no ano de 2022.

Isso porque, além da anterioridade nonagesimal, o ICMS também deve observar o princípio da anterioridade anual, previsto no artigo 150, III, “b”, da Constituição Federal. De acordo com essa previsão constitucional, “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Município, cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”.

Desta sorte, tendo em vista que a LC 190/2022 foi publicada apenas em 05 de janeiro de 2022, conclui-se que o DIFAL de ICMS em operações destinadas a não contribuintes só poderá ser cobrado a partir de 2023.

Não obstante supracitado entendimento, o CONFAZ celebrou novo convênio (Convênio ICMS nº 236/2021, publicado em 06 de janeiro de 2022[7]) autorizando e regulamentando a cobrança do diferencial de alíquota (DIFAL) do ICMS já no ano de 2022. Embora cada estado ainda deva regulamentar individualmente o tema, trata-se de um grande indício de que os estados provavelmente virão a exigir o DIFAL a partir de 04/04/2022.

Assim sendo, com o objetivo de evitar excessos inconstitucionais do Fisco, é possível que o contribuinte busque o Judiciário – tanto de maneira preventiva quanto repressiva – a fim de garantir o direito de não lhe ser cobrado o DIFAL em operações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte no ano de 2022.

 

Eros de Mello Vieira Júnior

Advogado inscrito na OAB/PR sob o nº 66.086; graduado pelo Centro Universitário UNICURITIBA; pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET; graduado em Ciências Contábeis pela Universidade Federal do Paraná – UFPR; Contador inscrito no Conselho Regional de Contabilidade do Paraná – CRC/PR sob o nº PR-076555/O; membro do Instituto de Direito Tributário do Paraná – IDT/PR.

 

[1] Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

VII – em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á:

  1. a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto;
  2. b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele; (redação originária)

VIII – na hipótese da alínea “a” do inciso anterior, caberá ao Estado da localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual;

[2] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=551712. Acesso em 06/01/2022.

[3] Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

  • 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

VII – nas operações e prestações que se destinem bens e serviços a consumidor final, contribuintes ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual”.

VIII – a responsabilidade pelo recolhimento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual de que trata o inciso VII será atribuída:

  1. a) ao destinatário, quando este for contribuinte do imposto;
  2. b) ao remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto; (grifo nosso)

[4] Art. 146, Constituição Federal: Cabe à lei complementar:

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

  1. a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
  2. b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
  3. c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
  4. d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

[5] Altera a Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996 (Lei Kandir), para regulamentar a cobrança do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte do imposto.

[6] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

III – cobrar tributos:

  1. c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;

[7] Disponível em https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2021/cv236_21. Acesso em 07/01/2022.

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